DIES PRIMA
Julgando vós ser eu quem todos crêem que sou, suposto seria requerer que viésseis à minha presença para vos inquirir, talvez ouvir em confissão. Porém, não apelo à vossa presença para receber as vossas culpas e lhes atribuir uma pena, mas antes para vos revelar os meus pecados.
Por certo que estranhareis estas minhas palavras iniciais, marquês de Villanueva de Barcarrota, e presumo também que ficareis admirado por, tendo já pedido para virdes de Badajoz até Nieva do Guadiana, onde me encontro em terras lusitanas, ser convite apenas para ser executado dentro de mais de um mês, quando eu assim o ordenar. Esse será o tempo que prevejo necessitar para desvelar os meus crimes. Ao longo das manhãs, farei chegar cartas ao vosso palácio, uma em cada dia, relatando a história da minha vida. Quando terminar, então serei vosso prisioneiro.
Acredito que, ao lerdes estas linhas, o vosso primeiro impulso seja o de pensardes estar perante um embuste ou uma brincadeira de mau gosto. E que tenhais vontade de vir de imediato a esta casa, a mim cedida pelo pároco de Mora, irromperdes pelo meu quarto de sorte a confirmar se sou mesmo a pessoa que julgais eu ser. Não ireis cometer essa ousadia porque significaria que desacreditais, desde logo, da minha palavra. Para que possais merecer as minhas confissões, tereis de ser digno da minha confiança e de cumprir uma cláusula inalienável: concordar que eu escreva sem interrupção, sem vos atreverdes a interromper-me. Se assim o desejardes, podereis enviar-me, em cada tarde, algumas questões suscitadas pelos meus escritos, as quais procurarei elucidar, mas sem fugir ao rumo do relato. Nenhuma outra condição aceitarei, mesmo sabendo que, concluída a minha história, sereis dono do meu corpo e da minha vontade. Mas nunca antes.
Se transgredirdes, marquês de Villanueva de Barcarrota, se eu souber que tomais qualquer diligência para evitar que conclua o meu relato, vos garanto deter a suprema liberdade de, simplesmente, interromper esta confissão como se não a estivesse fazendo, como se nunca tivesse existido, e ordenar que me preparem o cavalo, sair desta casa, partir em direcção a Lisboa e, aí chegando, entrar no Paço da Ribeira para solicitar no meu anel o reverente ósculo de D. João III de Portugal. O rei português mo dará, qualquer que seja a hora do dia ou da noite.
Nem julgueis também que esta minha primeira missiva, e as outras que lhe sucederem, representam qualquer comprovação dos meus actos, e que sejam prova bastante para me puderdes agrilhoar. Estas letras que estais vendo, escritas pela minha mão esquerda, jamais poderão ser reconhecidas como tendo saído do meu punho, pois em nada se assemelham às que, de ordinário, uso. Aliás, vos causaria os maiores embaraços se as apresentásseis às justiças como sendo minhas, sem a minha confirmação oral e veemente, porquanto, para vosso espanto e de todos, se revelariam ser afinal pertença de uma régia mão que, aliás, já nem se encontra no mundo dos vivos.
Estou, contudo, persuadido de que ireis aceitar e respeitar esta minha imposição, porque se vos escolhi para me confessar e entregar, foi por reconhecer em vós, como Governador de Badajoz, um nobre de sangue e de ponderação. E que sabeis existir um tempo para falar ou escrever, outro para ouvir ou ler, e ainda outro para agir. E que, portanto, apenas agireis, como vos peço ou exijo, quando eu tudo tiver escrito e vós tudo tiverdes lido.
Em troca, garanto-vos sinceridade, marquês de Villanueva de Barcarrota.
Necessito, porém, de compor desde já um elogio à mentira, em oposição à verdade. Convenhamos que, prometendo franqueza, será contraditório fazer uma apologia da mendácia, porquanto sempre a ajoujamos ao engano, à deslealdade, à perfídia, à falsidade, ao fingimento, à hipocrisia e à traição. É ela, em sua essência, contrária à sinceridade, reprovável pelos ensinamentos da Santa Igreja. Qualquer teólogo assegurará ser a mentira execrável por conduzir à soberba e à violência. E que, desse modo, toda a mentira é malévola, e somente a verdade sempre benévola.
Contudo, neste mundo, em distintas e bastas ocasiões, muitas virtudes se encontram tanto na verdade quanto na mentira. E tanto na verdade como na mentira se vislumbram, em bastas e distintas ocasiões, muitas máculas e sofrimentos. Olhai o mundo, se duvidais! Mata-se por se dizer a verdade, se mata servindo-se da mentira, morre-se por se defender a verdade e se morre ao abraçar-se a mentira. Em nome da verdade, por mor da mentira, pelos dois motivos, se oprime e se tira a vida, se perde a vida e se é oprimido.
Aliás, pelas suas semelhanças, a verdade dos homens é a irmã da mentira. Embora tantas vezes possam parecer dissemelhantes, são como as duas faces de uma mesma moeda, não existindo uma sem a outra. E por esse motivo se confundem, se transmutam, quantas vezes, uma na outra. São ambas maleáveis, por não dependerem da razão e da realidade, que são imutáveis. Ao invés, são elas flexas perante o poder, que é inconstante. Se juntardes uma assembleia de povos malquerentes, cada um dirá ser a sua opinião ou causa a verdadeira, acusando as outras de falsas. A verdade para uns é a mentira para os outros. Quem decide quem mente, quem profere a verdade, acaba por ser um atributo do vencedor, que a impõe não tanto pela razão mas pelo poder da persuasão, pelo poder da argumentação, pelo poder da força, tantas vezes pelo poder das armas. E depois lutam, continuadamente, na defesa da sua verdade, mas não pela defesa da razão nem da realidade.
E assim sucede, marquês de Villanueva de Barcarrota, porque nem a verdade nem a mentira são perenes. A verdade hoje aceite pode ter sido a mentira de ontem e transformar-se no engano de amanhã. Por isso, o mundo dos homens é uma constante guerra para impor a verdade, aniquilando a mentira, por receio de esta lhe usurpar o lugar. E é nestas transmutações que muitos males sucedem, não necessariamente apenas aos reputados mentirosos.
Quantos foram os homens e até as mulheres, marquês de Villanueva de Barcarrota, que morreram por defenderem a verdade antes do tempo correcto, durante o tempo errado ou depois do tempo certo? E quantos mataram impondo como verdade o que antes era considerado mentira? E quantos mataram ou morreram na luta para verem a sua mentira olhada como verdade? Confundo-vos com palavras, mas se assim procedo é com uma simples intenção: a verdade não é sempre boa, nem a mentira é sempre má. Por serem iguais na essência, se exaltamos uma, não podemos aviltar a outra.
Engana-se assim quem julga que por apenas falar verdade será conduzido à salvação, que a mentira encaminha somente para a perdição. E engana-se quem julga que a mentira é contrária à ordem natural, à harmonia dos povos e até contra a nossa religião. Se o é, então o mesmo sucede com a verdade.
Vivemos uma farsa, marquês de Villanueva de Barcarrota, uma irónica mentira, ao conceder demasiada importância à verdade dos homens, à palavra autêntica. A palavra, quer a verdadeira quer a falsa, é apenas um vento que nos sai da boca, ou uma tinta derramada num pergaminho. Nada significam, nada mostram sobre a nossa conduta. Aos olhos dos homens, aquilo que vos digo pode assim não ser, mas acredito que aos olhos de Deus o é. Ou melhor, acreditei que o fosse.
Até há poucos dias julguei que para o Criador apenas os actos e os fins seguidos por qualquer homem indicavam quem ele era e, desse modo, Ele determinaria se o acolheria no Seu seio. Ou seja, que somente os actos, e seus fins, seriam atendidos no Juízo Final. E nada lhe escaparia. Sobre as criaturas humanas, acreditei ter Ele um olho grande e perspicaz que conseguia descobrir, penetrar e ver o mais recôndito pensamento e a mais dissimulada acção. Nenhuma palavra Lhe poderia escapar, por via do Seu ouvido aguçado e afinado, que tudo percebia, desde os cicios até aos gritos. E acreditei também que Ele detinha uma poderosa e inelutável mão que nos apontava os nossos menores descuidos e as nossas mais secretas meditações, até sobre aqueles que, como eu, possuem uma língua maleável ou uma mão habilidosa, e conseguem iludir e enganar os homens, ocultando a mentira e transmutando-a em verdade.
De igual sorte também acreditei, marquês de Villanueva de Barcarrota, que Deus permitia, mesmo em casos especiais, que a mentira prevalecesse sobre a verdade, a influía até em certos homens para obrarem o Bem. Isto é, Ele os levava a mentir, mas com bom coração, para, contornando a verdade dos homens, se poderem salvar e cumprir uma missão divina. Exemplos daquilo que vos digo encontram-se nas Sagradas Escrituras. Se Cristo desejasse que proferíssemos sempre a verdade acreditada pelos homens, jamais teria permitido que Simão Pedro o negasse por três vezes antes de o galo cantar. Aquele apóstolo não O negou por fraqueza humana ou cobardia, pois Deus não escolheria alguém com esses desdourados atributos para erigir a Igreja. Simão Pedro mentiu sim por influência divina, porquanto sem a mão de Deus nada lhe aniquilaria a sinceridade e lealdade. E sendo sincero e leal, dizendo a verdade, Simão Pedro se perderia, sem qualquer vantagem nem glória, perdendo-se assim a missão que Deus lhe destinara.
Muitos séculos antes, e de igual modo por intervenção divina, Abraão também mentiu, ao pedir a sua mulher Sara para ocultar a verdade, para que ela dissesse ser apenas sua irmã ao entrarem no Egipto. Com efeito, se Abraão e Sara proferissem a verdade, os egípcios tê-los-iam morto. E assim, pela virtude da mentira, Abraão foi muito bem tratado, ofereceram-lhe ovelhas, bois, jumentos, camelos, servos e servas, podendo continuar a sua missão divina. Poderia continuar com mais exemplos, patentes nas Escrituras, sobre a aceitação da mentira por Deus, mas poupo-vos.
Importante, sim, é dizer-vos, marquês de Villanueva de Barcarrota, que ao longo da minha vida, sobretudo nos últimos anos, acabei por assumir ser a mentira aceitável e benfazeja, por vezes o derradeiro recurso para se produzir ou manter o Bem e lutar contra o Mal. E que era lícito usar a mentira se não se cometessem as outras seis coisas que Deus abomina: nunca ter olhos altivos, nem as mãos causarem derrame de sangue inocente, nem o coração maquinar projectos iníquos, nem os pés se apressarem para o Mal, nem exortar testemunhas a proferirem falsidades, nem semear discórdias entre irmãos. E, claro, sem dirigir os dotes da mentira apenas para benefício próprio, pois este tipo de mentiroso é mais abominável que um ladrão.
É certo que podereis contrapor com a existência de homens bons, professos do Bem, que, sem nunca terem mentido, obtiveram assim as graças divinas – e, portanto, duvidareis das minhas palavras. Porém, asseguro-vos que neste mundo dominado pelo ferro, pelo ouro e pelo fogo, esses homens até podem praticar ou ter praticado o Bem, mas jamais conseguiram vencer as injustiças, lutar com sucesso contra as insídias e derrotar, em definitivo, o Mal. De ordinário, aqueles que insistem em defender a Justiça com palavras saídas do coração, imponderadas perante o poderoso Mal, e que se rebelam abertamente contra as atrocidades estão condenados ao fracasso e talvez à morte.
Poderemos dizer que, sendo perseguidos, encontram a glória em Deus, que morrem e se tornam santos mártires. No entanto, deixam este mundo como o encontraram. Olhai, aliás, o exemplo de Cristo, sacrificado pelos fariseus. Foi morto por usar palavras e actos verdadeiros, sem subterfúgios e manhas, para remissão dos nossos pecados, mas milénio e meio após o seu sacrifício está o mundo igual. Ou talvez pior. Continuamos a matar, a fazer sofrer, a ser intolerantes para aqueles que têm opinião contrária, com a agravante de ser a nossa religião, a religião de Cristo, que mais comete estes ignóbeis actos, ao difundir dogmas, para perpetuar a sua verdade e aniquilar quaisquer desvios.
A nossa Igreja não defende nem a verdade nem a Verdade de Cristo, defende sim o Poder dos Homens. Comporta-se como aquele que apenas se preocupa em impor a sua verdade, sem saber se é a realidade. Por isso, perante aqueles que se opõem às suas doutrinas, logo a Igreja se mostra lesta e inflexível em os acusar de professarem vãs e temerárias teorias, fruto de desvairados interesses, vaidades e paixões. E, hélas, nesta saga, nesta sanha, numa cegueira de poder, persegue e controla tanto os hereges como aqueles que amam Cristo e temem Deus.
Quantos homens bons terão já sido mortos em nome de Deus? Ou quantos tementes a Deus acabaram chacinados por cristãos, por aqueles que se arrogam grandes defensores da verdade? Tantos que um bispo português, um bom ancião, me disse, há não mais de meio ano, uma crua verdade: se porventura Cristo descesse de novo à terra, hoje já não seria crucificado pelos judeus, mas sim queimado num auto-de-fé. Por nós, cristãos! Facilmente os inquisidores Lhe formariam acusações, condenando-O como apóstata, impenitente e pertinaz, sem direito sequer à hipócrita piedade do garrote antes de acenderem a pira de lenha.
A tal verdade divina que a Igreja tanto se orgulha de defender, marquês de Villanueva de Barcarrota, baseia-se afinal na mais abjecta falsidade e na intolerância, impõe-se pela opressão e por guerras, enquanto a Verdade de Deus se deveria encontrar na tolerância, na compreensão e no amor. A criatura, a Igreja, passou a dominar o seu Criador, Deus. Muito apartados estamos, aliás, do cristianismo primitivo e a Inquisição é disso um paradigma. A nossa Igreja, para manter o seu poder, esconde e chega a manipular as Sagradas Escrituras. São Paulo, quando se dirigiu aos Coríntios dizendo ser mesmo necessário haver divisões para se tornarem conhecidos aqueles que resistem a Cristo, que até podiam estar enganados, não estava incitando à violência e ao ódio, mas sim a apelar ao diálogo e saudável confronto de opiniões. Mas os homens da Igreja decidiram trocar a força da razão pela razão da força. Em vez de fazer florescer uma seara de trigo, semeiam joio, porque parece dar-lhes mais prazer cortar as ervas daninhas do que colher apenas os grãos saudáveis. E assim se eliminaram os cátaros, os valdenses, os flagelantes, os fraticelos, os taboritas e tantas outras seitas antigas, e agora se perseguem mesmo os judeus e os muçulmanos sem nenhuma razão humana ou divina. Eis o mais atroz Mal: a verdade, que devia defender o Bem, a arrogar-se no direito de matar a mentira. Como se pode então tecer um elogio à verdade?
Por causa do medo e do terror que a Igreja lavra, semeia e aduba, tantos homens e tantas mulheres, às escondidas, viram-se para as crendices, para a superstição e para o paganismo, afastando-se de Deus por a Igreja somente lhes oferecer sofrimento. Com todos estes procedimentos, com a tal verdade dos homens, tem a Cristandade conseguido somente alimentar a hipocrisia entre os cristãos, obrigando muitos a renegarem à sinceridade. E aqueles que são sinceros e criticam os abusos dogmáticos da Igreja são condenados por este seu procedimento, por não venerarem os sacerdotes, mesmo se tementes a Deus.
Perante isto, marquês de Villanueva de Barcarrota, que poderia eu fazer, sendo um homem bom mas que não suportou olhar as injustiças?
O famoso Erasmo de Roterdão, morto há quatro anos, deixou--nos muitos escritos cheios de boas verdades embora a Igreja, lesta, se tenha já aprontado a considerá-los heréticos. Explicou ele, com refinada ironia, ser imprudente o homem que não se acomoda às coisas presentes, que não obedece aos costumes, que esquece aquela lei dos banquetes: Bebe ou retira-te. E que, ao invés, será prudente todo aquele que não querendo saber mais que os outros, convive e erra de boa vontade com e como a universalidade dos homens.
Ou seja, aplicando-se ao meu caso, se contestasse as doutrinas dos sacerdotes – retirando-me apenas do banquete –, a minha postura seria considerada ofensiva, uma falsa crença, fruto de uma vontade perversa. E se argumentasse com a justeza da minha opinião, se insistisse na bondade daquilo que defendia, receberia a malquerença, o desprezo, a repulsa, a perseguição e, porventura, a própria morte.
Por isso, marquês de Villanueva de Barcarrota, acabei por seguir uma vida de mentira, para fugir das garras do Mal e obrar o Bem. Manipulei a verdade da Igreja, a verdade dos homens, compus o meu engano, aparentando participar na farsa da vida, bebendo no banquete e nunca me retirando. Com a mentira e por bons propósitos, tornei-me o perfeito cortesão no banquete de Erasmo, alegrando os convivas, oferecendo-lhes vinho, tornando-os ébrios, mas para assim conseguir vencer a arrogância e, com prudência e sobriedade, usar os meus dons e sabedoria para estancar o sofrimento dos perseguidos pela Igreja e seus fanáticos acólitos. E na missão que julguei estar investido, consegui esses propósitos.
Contudo, há uma semana, por vontade ou imposição de Deus, tudo cessou. Por isso, aqui estou a desvendar os meus fingimentos. Sou, marquês de Villanueva de Barcarrota, e assim me confesso, um embusteiro completo. Por isso, não me chameis Eminência, porque não o sou. Por núncio apostólico me reconhecem, em Roma e Lisboa, mas jamais o deveria ter sido, pois consegui esse cargo pelo logro. Se Inquisidor-Geral de Portugal me tornei, consegui-o também por falsificação. E nem sequer me chamo Alonso Perez de Saavedra, porquanto na pia baptismal me deram o nome de meu pai, Juan, e depois disso ainda o transmudei para Hernando durante longos anos. É este o homem que sou, é este o homem que ireis agrilhoar. Mas, repito-vos, nunca antes de relatar toda a minha história.