domingo, 14 de junho de 2009

Entrevista ao jornal Ensino Magazine

O despertar da História

por: Eugénia Sousa (Maio de 2009)

É jornalista e escritor, licenciou-se em engenharia biofísica e foi ambientalista. Em entrevista concedida por email, Pedro Almeida Vieira fala d`A Mão Esquerda de Deus. O romance cruza a vida do andaluz Perez de Saavedra com a História de Portugal numa ficção histórica em torno do inquisidor-Geral de Portugal, uma figura intrigante que numa época de medo e convulsões usou a mentira ao serviço do bem.

O seu último romance, A Mão Esquerda de Deus tem como protagonista Alonso Perez de Saavedra, o falso núncio andaluz que no reinado de D. João III seria o primeiro Inquisidor-Geral de Portugal. Como é que Saavedra entra na sua vida?

Foi um acaso que me fez conhecer esta fábula, considerada verídica durante alguns séculos, acreditada mesmo por homens como Voltaire. Quando estava ainda a escrever o meu anterior romance, O Profeta do Castigo, sobre uma profecia em redor do terramoto, a ascensão ao poder do marquês de Pombal e a vida do jesuíta Gabriel Malagrida (último condenado à morte pela Inquisição portuguesa), deparei-me com referências a esta fábula, num livro francês do século XVIII que a transcrevia. Por essa altura, ainda descobri, por um suspeitoso acaso, uma suposta biografia espanhola deste falso núncio e, depois de a ler, surpreendido por nunca antes ter visto tal relato em livros de História convencional, pesquisei mais e constatei ter aqui uma matéria excepcional para romancear.

Ao contrário do que se poderia esperar da figura de um inquisidor, Saavedra é um homem que quer fazer o bem e se move por um amor…

Aí está a ficção do meu romance. Nas várias versões desta fábula até ao século XVIII, Saavedra surge ora como um simples falsário com intuitos de mero poder ora como alguém que assumia ter uma função divina. Mas mesmo neste segundo caso, com o objectivo de combater as heresias. Em todo o caso, ele não seria um burlão perfeito, porque na fábula original acaba por ser descoberto. Ora, isso não me interessava como romancista. Assim, recriando esta personagem, A Mão Esquerda de Deus é uma alegoria: se a burla e a mentira, por norma, surgem associadas à maldade, eu inverto este sistema, criando alguém que, para praticar o bem naquela época histórica, não usa a verdade. Usar ou dizer a verdade naquela época poderia resultar em morte. Tento também mostrar como a mentira e a dissimulação podem ser, em muitos casos, a única forma de praticar o bem. Porém, o romance também encerra uma história que mostra ser o amor (aos homens ou a uma só pessoa) que em muitos casos nos faz mover e que a vida deixa de ter sentido quando não se alcança esse propósito. Mas este romance é muito mais do que isto: pretendi também, com rigor histórico, retratar um período de grandes convulsões sociais e religiosas, questionado também a conduta da Igreja e de Deus perante a Inquisição, uma das páginas mais negras da nossa História.

Se os sentimentos são comuns a personagens do século XVI ou XXI, a forma de os exprimir mudaram. Na Mão Esquerda de Deus existiu uma preocupação especial com a linguagem?

Entre a nossa geração e as antepassadas, os vícios e as virtudes são semelhantes. Pensamos de forma similar, temos os mesmos anseios, dúvidas e desejos, apenas com a diferença de que hoje possuímos mais tecnologia e o mundo encolheu.
Aliás, renego a ideia dicotómica de que existem os romances e os romances históricos, estes apresentados quase como um subgénero da literatura. Para mim há só romances. Bem ou mal escritos, com boas ou más histórias. É bom recordar que o mais conhecido livro do nosso Nobel, José Saramago, se passa no século XVIII (Memorial do Convento) e o último no século XVI (A Viagem do Elefante). São romances ou romances históricos? Pouco importa. São excelentes romances, basta isso. Em qualquer dos casos, um romancista deve ter em conta o enquadramento da época, evitar anacronismos e ter em consideração os contextos históricos e as relações interpessoais dos períodos retratados. Infelizmente, nem sempre isso sucede nos romances ditos históricos, que em muitos casos são feitos às três pancadas e se tornam em biografias romanceadas maçudas e pouco atraentes. Mas isso também sucede com os romances de época. Escrever é fácil, escrever um mau livro ainda mais fácil é. Por tudo isto, preocupa-me apenas o cuidado nos enredos e no tipo de linguagem, algo barroca mas inteligível, para dar credibilidade e maior beleza à história. No entanto, ainda estou muito longe do apuro estilístico de escritores como José Saramago, Mário de Carvalho, Miguel Real ou sobretudo Fernando Campos – só para citar escritores vivos que andam ou andaram na ficção histórica.

O que é que levou um engenheiro biofísico, que também é jornalista e ambientalista, a escrever romances?

Bem, se sou licenciado em Engenharia Biofísica, se já fui ambientalista e se sou também jornalista, por que não poderia escrever romances? Eu percebo o sentido da pergunta. Hoje estamos habituados à especialização, mas o meu percurso acaba, ligando as pontas, por ser natural. O meu primeiro romance, Nove Mil Passos, sobre a construção do Aqueduto das Águas Livres, nasce do meu interesse como engenheiro perante uma obra pública. Depois, toda a parte de investigação e selecção de informação aproveita a minha costela jornalística. Ter continuado depois, escrevendo mais romances, deveu-se ao gosto pela primeira experiência. E por não ter encontrado argumentos para me levarem a desistir. Além disso, escrever leva-me a reflectir e a compreender melhor a natureza humana – e não se duvide que se encontram muitas explicações para aquilo que hoje somos escrevendo sobre assuntos passados há séculos.

As boas histórias da História explicam a preferência por escrever romances do género ou a explicação é outra?

Nunca pensei muito nisso. Como atrás disse, o importante é uma boa história e uma boa escrita, independentemente do período em que se passa. O período histórico é secundário para fazer um bom romance. Como leitor, sinto-me atraído por romances que retratem aquilo que desconheço ou por via de me apresentarem algo numa perspectiva diferente. Agora, do ponto de vista de probabilidades, como o tempo passado é muito maior do que o da minha geração, há mais histórias dentro da História susceptíveis de se tornarem bons romances. Mas também há histórias dentro da História que são interessantes mas que terão sempre de ter um dedo grande de criatividade para se tornarem romances apelativos. Por exemplo, se eu tivesse pegado simplesmente na fábula do falso núncio, sem recriar completamente o personagem, o romance não seria interessante. Ninguém quereria ler a história de um burlão que tinha sido apanhado.

Quais as características que fazem de um personagem um bom personagem e de um escritor um bom escritor?

Já atrás referi alguns aspectos. Mas penso que os leitores são soberanos nessas matérias, sobretudo sobre se um escritor é ou não bom. Em todo o caso, as personagens têm de possuir «substrato»: não podem ser fúteis (a não ser que seja essencial na narrativa), têm de ter algo de surpreendente sem serem incoerentes ao longo do seu percurso. Mas não existem receitas. E sobretudo o mais importante é a forma como se escolhe o narrador. Nesse aspecto, eu gosto de narradores interventivos, que são também personagens, que entrem em diálogo com os leitores. Tenho procurado isso nos meus romances, com a escolha de Francisco de Holanda (no Nove Mil Passos), do próprio Diabo (no Profeta do Castigo Divino), e de Alonso Perez de Saavedra (n’A Mão Esquerda de Deus).

Venceu o Prémio Ambiental Fernando Pereira (2003) por um vasto trabalho em defesa do ambiente e publicou O Estrago da Nação um perfil ambiental do nosso país. Seis anos depois qual é a análise que faz de Portugal na área do desenvolvimento sustentável?

Nos últimos tempos tenho procurado evitar tecer muitas considerações sobre o estado do ambiente em Portugal e sobre um Governo liderado por um antigo ministro do Ambiente, porque, por respeito à educação dada pela minha mãe, desejo evitar o uso de demasiadas expressões vernáculas. Assim, acrescentaria apenas que estamos pior, involuímos e este Governo tem estado a implodir os alicerces de décadas de política ambiental, mesmo se antes dele as coisas já não estavam nada bem.

Pode falar-nos do livro que está escrever?

Tenho estado em reflexão sobre dois ou três projectos que tenho em mãos, um deles será um ensaio biográfico sobre um dos irmãos do marquês de Pombal, que teve mais influência no pombalismo do que aquilo que se imagina. Já tenho alguns capítulos elaborados, mas talvez venha a publicar antes disso um romance sobre a expulsão da Companhia de Jesus em Portugal e a sua extinção mais tarde pelo papa em 1773, mas relatando estes episódios de uma forma sui generis.