segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Recensão no jornal Expresso de 8 de Agosto de 2009

A Mão Esquerda de Deus, de Pedro Almeida Vieira, Dom Quixote

Romance - História do homem que ascendeu no reinado de D. João III à custa de burlas e falsificações.

É, em minha opinião, o romance a levar para férias. Vou na quarta visita - desta feita salteada -, apenas pelo gosto de reler determinadas passagens, e, de cada vez que o reencontro, acontece dar por mim quase incrédula com a relativamente discreta recepção ao livro desde que foi publicado. Se somos apenas distraídos ou descaradamente invejosos, pelo menos que nos sirva de lição o exemplo de Ruiz Zafón, cujo romance "A Sombra do Vento" obrigou o mercado espanhol a referir-se-lhe quando, de boca em boca, o romance excedeu as expectativas dos críticos e distribuidores. Enquanto espero que o fenómeno aconteça, abster-me-ei de contar a história, receosa de dizer de mais, mas, sobretudo, de ficar aquém dela própria.

Referirei apenas que se situa temporalmente na primeira metade do século XVI e que vai muito mais longe do que a reconstituição ficcionada sobre as pretensas confissões de Alonso Pérez de Saavedra, que teria sido núncio apostólico em Lisboa e inquisidor-geral do Reino de Portugal, no reinado de D. João III. Para além da perfeita história de amor que condimenta o romance, há todo um contexto muito rigoroso em que todas as personagens que rodeiam o protagonista são verdadeiras no sentido histórico, começando pelo seu primeiro protector, Frei Hernando de Talavera, co-governador de Granada e bispo-confessor de Isabel de Castela.

Mas não só: também são rigorosos os contornos político-sociais, em particular a sucessão ao trono após a morte da rainha e a coincidência biográfica com D. Rodrigo Ponce de Léon, duque de Arcos, de quem terá sido espião na corte de D. Fernando. Absolutamente crucial para o envolvimento do leitor na trama é a descoberta de que Saavedra vivia quase em permanência com uma luva na mão esquerda; e que essa mão era, por si só, prodigiosa: deformada, aleijada, aparentemente inútil, mas que sabia pulsar e aquecer quando em contacto com homens de coração perfeito, e gelar, enrijecer como uma pedra, em presença da malignidade. Outros dons assombrosos vivem nesta personagem trazida pela lenda, ambígua na força da sua incomensurável dor.

Luísa Mellid-Franco

2 comentários:

Lídia disse...

Li "A Mão Esquerda de Deus" durante o mês de Julho. Contudo, embora nunca tenha compreendido muito bem essa separação entre leituras de Verão e leituras de Inverno, gostaria de o ter lido à lareira.
É um livro bastante válido do ponto de vista histórico e acrescenta dados que eu, sendo amante da questão (Inquisição), desconhecia.
Único reparo: a personagem feminina, objecto dos amores do protagonista, não foi suficientemente desenvolvida. Carece de profundidade. Acaba por ser, apenas, uma espécie de personagem tipo (crstã nova).
Finalmente, um incentivo ao autor pelo que promete :-)

Pedro Almeida Vieira disse...

Cara Lídia, muito obrigado pelo seu comentário. Em relação ao seu reparo, é pertinente. Porém, foi uma opção deliberada não desenvolver a personagem feminina, permitindo assim que o/a leitor/a a possa «imaginar». É nesse aparente pouca profundidade da personagem de Beatriz e na tão profunda paixão de Perez de Saavedra por ela, nesse paradoxismo, que reside na minha opinião a história de amor retratada no romance... Mas são opções que se tomam, obviamente.