quarta-feira, 18 de março de 2009

Recensão na revista Ler

Partindo de uma espécie de lenda, de fábula erguida sobre rumores, cuja veracidade é actualmente posta em causa pela historiografia devido à ausência de quaisquer provas consistentes – apesar de até há dois séculos ter sido tida como verdadeira por vários autores, de entre os quais se destaca o nome de Voltaire –, Pedro Almeida Vieira (n. 1969) escreveu um romance inteligente e astuto em que, para além de outras questões, indaga a natureza da «verdade histórica» e, por consequência, também do poder da ficção. Neste jogo com o leitor, Almeida Vieira aproxima-se de alguns autores contemporâneos como José Eduardo Agualusa, que para epígrafe de um dos seus primeiros livros «escolheu» uma frase supostamente retirada de uma obra de existência duvidosa, e que enuncia de forma clara a vertente lúdica de toda a ficção histórica: «A verdade, na História, não é o que foi, mas o que tendo podido ser, parece ter sido.»

O romance é constituído por 41 cartas escritas pela disforme mão esquerda de Alonso Perez de Saavedra e dirigidas ao marquês de Villanueva do Barcarrota, governador de Badajoz. As missivas são enviadas directamente ao fidalgo, e este a elas responde, mas do teor das suas respostas não ter o leitor conhecimento directo, apenas podendo inferir do seu conteúdo pela carta seguinte. Nessas epístolas, o andaluz Alonso Perez de Saavedra, o falso núncio da Santa Sé em Portugal no reinado de D. João III, e primeiro inquisidor-geral, vai dando conta do que foi a sua vida, repleta de aventuras (dignas de um pícaro), das suas razões teológicas em elogio da mentira, e dos tormentos que passou até ousar tornar-se, por burlas e falsificação de documentos papais, o responsável pelo estabelecimento da Inquisição portuguesa em 1539.

Toda a narração retrata de maneira exemplar as convulsões religiosas, políticas e sociais que encheram o século XVI. Saavedra dá ainda conta dos poderes «mágicos» (e para ele essenciais) da sua mão esquerda, que se tornou «benfazeja», e que desde criança trazia enluvada, e de como conseguiu ultrapassar a hipocrisia da Igreja, a intolerância e a maldade dos homens, transformando a mentira numa virtude.

Num romance histórico epistolar, o autor pode correr o risco de se sentir tentado a adoptar uma linguagem demasiado barroca (por pretensas razões de verosimilhança), tornando assim a leitura menos fluente. Mas Almeida Vieira, embora assumindo correr esse risco, conseguiu encontrar um registo estilístico escorreito que em nada «entorpece» a leitura.

Autor: José Riço Direitinho/ Ler Março de 2009

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