quarta-feira, 25 de março de 2009

Recensão no Jornal de Letras, por Miguel Real

O pormenor, o rigor e o fantástico

Em conjunto com O Último Cabalista de Lisboa, de R. Zimler, As Fogueiras da Inquisição, de Ana Cristina Silva, e As Horas de Monsaraz, de Sérgio Luís de Carvalho, A Mão Esquerda de Deus, de Pedro Almeida Vieira, recentemente apresentado, constitui-se como um dos melhores romances históricos sobre a Inquisição publicados desde o 25 de Abril de 1974.

Engenheiro de formação e jornalista de profissão, Pedro Almeida Vieira evidencia-se como um exímio historiador e não menos notável romancista, como o provam os dois anteriores romances, Nove Mil Passos (2004) sua estreia, narrando a história do Aqueduto de Alcântara, em Lisboa, concebido por Custódio Vieira, e O Profeta do Castigo Divino (2005), história maravilhosa de Gabriel Malagrida, e o confirma em absoluto a publicação de A Mão Esquerda de Deus.

Analisando os três romances históricos publicados por Pedro Almeida Vieira, constatamos parecer este autor ter nascido «adulto». Com efeito, não existem saltos estéticos qualitativos ou rupturais entre os seus três romances. De qualidade semelhante, a diferença reside, quanto ao conteúdo, no enriquecimento dos pormenores históricos, ou dito de outro modo, no relevo e na força que os pormenores históricos possuem no seio da narrativa, aprimorando-a esteticamente. Não tem sido no trabalho sobre a estrutura, a intriga ou o léxico que Pedro Almeida Vieira tem crescido literariamente, mas, sim, no intensíssimo trabalho sobre o pormenor histórico. Esta a primeira característica que singulariza a sua obra no seio do actual romance histórico português: o culto do pormenor.

Com efeito, Pedro Almeida Vieira tem provado ser este género literário a sua vocação maior, trabalhando-o com um rigor que está longe de encontrar par na nova geração dos romancistas históricos, enfatizando, ao modo de Fernando Campos e João Aguiar, o escrúpulo alexandreherculiano da fidedignidade e da plausibilidade narrativas, operando com autenticidade e fidelidade a reconstituição dos grupos sociais, das instituições, dos costumes, dos usos, dos rituais profanos e das liturgias religiosas e da mentalidade da época abordada no romance. Aqui reside a segunda característica dos seus romances: a lição clássica oitocentista da obediência ao rigor do estudo das fontes e dos documentos históricos.

Ao culto do pormenor e ao culto do rigor, Pedro Almeida Vieira acrescenta uma terceira característica na composição das suas narrativas – o fantástico. De facto, o maravilhoso e o assombroso têm-se estatuído como o enquadramento geral das suas histórias. Nos dois primeiros romances, o fantástico emerge por via da instância narrativa (Francisco de Holanda e o Diabo); no romance ora publicado, o fantástico histórico é concentrado nas capacidades inatas da «mão esquerda» de D. Alonso Perez de Saavedra, a personagem principal, o falsário que, segundo a lenda, teria sido o primeiro Inquisidor-Mor de Portugal.

Em síntese, a descrição da feitura das tintas, da gama de papéis usados, de espectáculos, como as touradas espanholas no século XVI, os diversos momentos de um auto-de-fé, os hábitos da aristocracia andaluza narrados detalhadamente, o conhecimento pormenorizado das dinastias nobres espanholas, a situação religiosa tolerante de Málaga [Granada] após a Reconquista, a introdução da Inquisição em Portugal forjada pela personagem principal por amor a Beatriz, judia espanhola fugida para Portugal, a própria fabulação da possibilidade de um falsário se ter tornado o primeiro Inquisidor-Mor de Portugal, a estrutura narrativa epistolar e o fim absolutamente inesperado do romance, prestando sentido ao todo da história, provam com abundância ser Pedro Almeida Vieira um caso muito positivamente singular no actual panorama do romance histórico português.

Autoria: Miguel Real, JL nº 1004 (25 de Março-7 de Abril de 2009)

Sem comentários: